23 de março de 2018, 17h53
Por Marcelo Galli e Ana Pompeu
Antes de adiar a discussão sobre a provável prisão do ex-presidente Lula, o Supremo Tribunal Federal deu um duro golpe na chamada jurisprudência defensiva e abriu suas portas aos Habeas Corpus. É o que avaliam advogados e professores ouvidos pela ConJur, que comemoraram o posicionamento assumido pela corte na quinta-feira (23/3).
Para o advogado e professor de Direito Penal na USP Pierpaolo Bottini, a proteção da liberdade é função do STF. “Apesar das poucas vozes contrárias, a Suprema Corte reafirmou seu papel de protetora da Constituição. Abrigar o Habeas Corpus é garantir o Estado de Direito, é reconhecer a liberdade como valor máximo, é não transigir com qualquer ato que resvale nesse direito fundamental”, afirma.
Autor do livro Habeas Corpus e o controle do devido processo legal, o advogado Alberto Toron analisa que o julgamento evidenciou a divisão entre os ministros quanto ao tema. “Podemos dividir os ministros entre aqueles que têm preocupação com a eficácia da garantia dos direitos fundamentais e os que não têm. Os últimos se apegam a questões formais para, se escudando nelas, não conhecer do pedido, ou, em outras palavras, não fazer justiça”, aponta.
Um dos argumentos contrários ao conhecimento do HC do ex-presidente Lula foi que houve decisão colegiada do Superior Tribunal de Justiça depois da impetração. Para Toron, são “falsas questões para objetar-se o trânsito do HC”, já que o novo HC, depois da decisão colegiada, seria o mesmo. “Ou seja, atrasa-se o pedido. Quando se fala em celeridade, parece que se busca apenas contra o réu. Quando se fala em fazer justiça, esses ministros não têm preocupação. A questão deles é somente a pureza do direito. É lamentável”, critica.
Da mesma forma compreende Aury Lopes Jr, professor de Direito Processual Penal da PUC-RS. “O HC no Brasil é referência mundial da tutela de garantias fundamentais. O instrumento não foge do objeto do Supremo. Ele é o objeto do Supremo.”
No entendimento dele, afirmar que o Brasil concede mais Habeas Corpus que outros países é um erro metodológico. “Não se pode fazer direito comparado à la carte. É uma falácia comparativista. Na França, Estados Unidos ou no Chile, por exemplo, o uso é menor, mas porque são sistemas completamente distintos, com estruturas absolutamente diferentes”, afirma.
Em relação ao julgamento desta quinta-feira, ele considera que o Pleno perdeu muito tempo discutindo se conhecia ou não o HC, quando, na verdade, é sabido o contraste de entendimento entre as duas turmas. “Tratou-se muito mais de uma discussão deles se cobrando posição. Mas foi importante se ouvir uma valorização do HC e o contraste dos ministros da 1ª Turma, com uma visão civilista do HC, totalmente equivocada”, disse.
Para o advogado José Roberto Batochio, que sustentou em favor de Lula no julgamento, os ministros que se pronunciaram em defesa do conhecimento amplo e irrestrito do Habeas Corpus homenagearam a Constituição, que consagra o HC como o mais importante e fundamental instrumento de proteção à liberdade. “Esse entendimento de que o HC tem que ter trânsito em qualquer tribunal, independentemente de formalismos pernósticos, é uma decisão democrática e sintonizada com os valores consagrados no corpo permanente da nossa Constituição.”
Segundo Batochio, a história do HC no Brasil é de luta pela liberdade, “violada pelo arbítrio”. “Aqueles que querem impor restrições, obstáculos, barreiras e barricadas contra o processamento do HC certamente não são sensíveis à extrema necessidade do livre curso do Habeas Corpus para assegurar a liberdade”, afirma.
O constitucionalista e professor de Processo Penal Lenio Streck elogia a decisão do Supremo e vê problemas de lógica nos votos vencidos. Para ele, a discussão sobre o cabimento do HC já é um retrocesso por si só — Lenio é um dos autores da ADC ajuizada pelo Conselho Federal da OAB pela constitucionalidade do artigo 283 do CPP. “Os ingleses que inventaram o Habeas devem estar se revirando no túmulo”, ironiza. “Afinal, um HC pode ser dado de ofício. Como não conhecer se saiu de turma para o Plenário? O HC perdeu a identidade no caminho? Ainda bem que a maioria, mesmo que apertada, salvou a corte suprema de cometer um ‘crime epistêmico’.”
O criminalista Antônio Carlos de Almeida Castro (Kakay), afirmou que ultimamente a 1ª Turma tem adotado posição “muito restritiva” em relação ao HC, fechando o caminho para o recurso e provocando retrocesso. Ele classificou essa postura de “preciosismo retrógrado”. Com a decisão do Plenário, analisa Kakay, a 1ª Turma terá que agora seguir o entendimento majoritário que se formou.
Ele destacou o voto da ministra Rosa Weber, que faz parte do colegiado, que vota restringindo o cabimento do HC na turma, mas aderiu ao entendimento da maioria no Plenário. “Vamos voltar a ter a possibilidade de discutir HC com mais largueza também na 1ª turma”, comemorou o advogado.
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Lenio Streck, constitucionalista e professor de Processo Penal
“A discussão sobre conhecer ou não um Habeas Corpus é um retrocesso. Os ingleses que inventaram o Habeas devem estar se revirando no túmulo. Mas o mais estranho – para ser eufemista e generoso – foi o voto do ministro Luiz Edson Fachin. Ele negou a liminar do HC. Portanto, conheceu. Como poderia negar a liminar sem conhecer? Lógico isso, não? Só nego o que eu conheço. Pelo menos no Direito é assim. Depois Fachin remeteu ao Plenário. Deu imbróglio. Ninguém queria colocar em pauta. Finalmente posto em pauta, o ministro não conheceu do HC. Poderia escrever um texto ou um livro com o título Habeas Corpus – esse desconhecido! Ainda bem que a maioria, mesmo que apertada, salvou a Corte Suprema de cometer um ‘crime epistêmico’. Afinal, um HC pode ser dado de ofício. Como não conhecer se saiu de turma para o Plenário? O HC perdeu a identidade no caminho?”
Daniel Sarmento, constitucionalista
“Achei positiva a posição do STF de conhecer do HC do Lula. O HC é remédio importante porque tutela a liberdade, que é, depois da vida, bem jurídico mais protegido pela Constituição. Nesse momento de hiperencarceramento e ameaça às liberdades individuais, é importante que o STF adote leitura generosa do HC, como aliás é da sua tradição”.
Michel Saliba, advogado e presidente da Abracrim-DF
“O STF garantiu ao Habeas Corpus a magnitude que a medida merece. Esta medida constitucional não pode ser barrada por formalidades processuais, sob pena de se jogar o HC em uma vala comum. Entre as garantias individuais e a métrica de uma rígida interpretação processual, o STF, acertadamente, optou pela primeira. Vitória da cidadania”.
Daniel Bialski, advogado criminalista
Habeas corpus é o meio idôneo secular de liberdade. Quando alguém reclama que está sofrendo constrangimento ilegal não se pode e não se deve impor barreiras. A grande missão do STF é proteger os direitos, os princípios e a liberdade. Em boa hora esperemos que a Suprema Corte reveja o verbete 691, e passe a examinar os suplícios dos que reclamam sofrer mazelas e ofensas aos seus direitos”.
Carolina Abreu, advogada
“A decisão do STF pela admissibilidade da impetração resgata a compreensão da Corte a respeito da importância do habeas corpus para o controle da legalidade de atos que impliquem cerceio ou ameaça à liberdade de locomoção. O julgamento de ontem, portanto, é um importante precedente no reconhecimento de que o HC, ação constitucional voltada para a preservação da liberdade, não pode ser restringido a pretexto de rigores formais de ocasião”
Marcelo Turbay, advogado
“O julgamento representou um marco muito importante, não apenas no que se refere ao tratamento da presunção de inocência, mas, sobretudo, em razão da tomada de posição em favor do retorno ao reconhecimento do habeas corpus como instrumento fundamental e indispensável de tutela da liberdade, retomando-se assim a tradição constitucional e histórica da nossa Suprema Corte”.
Cleber Lopes, advogado
“O resultado do julgamento é um bálsamo em meio à loucura que vivemos, onde decidir passou a ser um ato de vontade”
Rodrigo Mudrovitsch, advogado.
“A existência de um novo precedente do Plenário a respeito do tema deve ser festejada. A tendência de interpretação restritiva do HC por parte de alguns ministros do STF deverá ceder espaço à visão ampla que sempre existiu. É perigosa a restrição das hipóteses de cabimento do HC, especialmente no momento atual em que o exercício do direito de defesa é cada vez mais difícil”
Marcelo Galli é repórter da revista Consultor Jurídico.
Ana Pompeu é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 23 de março de 2018, 17h53
https://www.conjur.com.br/2018-mar-23/lula-supremo-reabriu-portas-hc-afirmam-advogados