Na noite desta quarta-feira (7/7), o senador Omar Aziz deu ordem de prisão a Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, que prestava depoimento na CPI da Covid-19 no Senado.
Na noite desta quarta-feira (7/7), o senador Omar Aziz deu ordem de prisão a Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, que prestava depoimento na CPI da Covid-19 no Senado. Dias foi acusado pelo senador de ter mentido, o que teria justificado a ordem de prisão em flagrante. Ele foi detido pela Polícia do Senado, e liberado após pagamento de fiança (de cerca de R$ 1 mil).
Waldemir Barreto/Agência Senado Roberto Ferreira Dias, ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde, recebe voz de prisão. Na foto, acompanhado da advogada, Maria Jamile José.
Maria Jamile José, advogada de Roberto Dias, apontou a ilegalidade da ordem de prisão, destacando que não havia fundamentos suficientes. “A prisão decretada ontem na CPI foi absolutamente ilegal e abusiva, seja porque não configurado qualquer crime de falso testemunho, já que não havia prova da suposta falsidade — e sim mera divergência de versões —, seja porque a sessão já havia sido encerrada, tendo sido reaberta, concomitantemente à Ordem do Dia no Senado Federal, com o fim único e exclusivo de que fosse decretada a prisão do depoente.”
O episódio também preocupou outros advogados, como o criminalista Alberto Toron, para quem a ordem de prisão “desmerece as melhores tradições do nosso Senado”, chegando a configurar abuso de autoridade. Toron ressaltou o fato de que, apesar de Dias estar sendo ouvido como testemunha, era óbvio que se tratava ali de um investigado, que teve seus direitos violados.
“É evidente, malgrado ele tivesse sido qualificado como testemunha, que, pela natureza das indagações, ele era investigado. Como investigado, ele tem não apenas o direito de permanecer calado, o direito de não se autoincriminar, e até de dar uma versão aos fatos que seja fantasiosa. A prisão dele é a consagração do arbítrio ao vivo e em cores. Lamentável episódio, que corporifica até mesmo o crime de abuso de autoridade.”
O criminalista José Roberto Batochio concorda. “Além de escancarado arbítrio, houve grosseiro equívoco jurídico: prisão em flagrante não se ‘decreta’, mas ao que se encontra em situação de flagrância, ‘autua-se’!”, declarou.
“Ademais, investigado ou acusado não comete jamais, no nosso sistema, delito de falso testemunho. A Constituição da República assegura ao investigado ou ao acusado a liberdade de dizer (ou não dizer) o que bem entender, por isso que não deve nunca ser compromissado como testemunha, como é óbvio. É o direito de não ser obrigado a se incriminar.”
À Folha de S.Paulo, o advogado Gustavo Badaró também tinha afirmado que Roberto Dias não poderia ter sido preso por falso testemunho, já que ele era investigado. Segundo Badaró, os senadores que foram alvos da “lava jato” agora se comportam como seus algozes.
“Reclamaram que a ‘lava jato’ foi utilizada para fins políticos, para perseguir dizendo ser combate à corrupção, e parece que estão fazendo a mesma coisa”, afirmou ao jornal. “Quando têm o poder fazem o que criticavam anos atrás, eles estão sendo o Janot dos alvos da CPI.”
Uma das vozes mais abalizadas a respeito da dicotomia entre o direito penal mínimo e o direito penal máximo, o desembargador aposentado Abel Gomes, relator da apelidada “lava jato” no Rio de Janeiro, também estranhou a decisão de Aziz: “Prisão absolutamente ilegal e inconstitucional no nosso direito. Não há ‘crime de perjúrio’ no Brasil, mas somente falso testemunho, que é conduta típica atribuída somente a quem é ouvido como tal e tem o compromisso de dizer a verdade.”
“A condição de testemunha, suspeito ou investigado, por sua vez, não decorre da vontade de quem inquire, mas sim da substância dos fatos que levam o sujeito a ser chamado para depor”, prosseguiu. “O suspeito ou investigado, nessa condição, pode calar, mentir, confessar ou colaborar, logo, não haveria legalidade na prisão.”
Para o criminalista Daniel Bialski, membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e sócio de Bialski Advogados, a CPI não pode querer, ao mesmo tempo, investigar, processar e punir. “Não é essa finalidade precípua dela. Seu objetivo é apurar fatos e determinar que as autoridades competentes tomem as medidas cabíveis.”
Ele defende que é necessário revisitar e modificar a forma de procedimento da CPI, especialmente, no que se refere à possibilidade de atuação dos advogados. “Muitas vezes, eles não podem se manifestar e os seus clientes acabam, infelizmente, sendo ameaçados de prisão. De forma temerária e até indevida, muitas das vezes, eles não podem sequer argumentar juridicamente sobre a ilegalidade destas postulações. Isso afronta não somente o artigo 133 da Constituição Federal, mas especialmente os direitos e prerrogativas da atividade profissional.”
Ele acredita que, no futuro, o STF vai reconhecer que esta é uma prisão nula e que não se sustenta juridicamente. “A prisão tem um cunho muito mais político do que jurídico”, aponta. “O STF já reconheceu que a pessoa que vai depor e se autodefende não comete o crime de falso testemunho. No caso, não houve tempo hábil sequer para que este depoente acionasse o Supremo para lhe dar o direito de se calar sobre eventuais questionamentos que pudessem vir a incriminá-lo.”
Thiago Turbay, advogado criminalista e sócio do escritório Boaventura Turbay Advogados, também considera que a prisão de Dias foi abusiva. “Qualifica-lo como testemunha havendo imputações contra ele é um burla de dois programas normativos os quais não pode haver flexão: a ampla defesa, tomada por uma concepção acusatória, e a proteção ativa de direitos fundamentais” defende.
“No caso, a decretação da prisão bloqueou o âmbito de incidência da presunção de não culpabilidade como regra de tratamento e garantia do investigado. Ademais, o fundamento o qual deveria servir de apoio à ação pública foi ignorado. A liberdade é o fundamento reitor das ações persecutórias, é o valor maior a ser protegido.”
“O episódio revela o risco da concessão de poderes àqueles que estão desejosos e imbuídos de consorciar a culpa”, afirma. “O juízo neutro é garantia de responsabilização justa, não é o interesse censor — ainda que legítimo — o garantir de um processo justo.”
Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues, sócio-fundador do Pisco & Rodrigues Advogados Associados, concorda que a prisão foi uma medida excessiva e desproporcional. “O crime de falso testemunho é aquele em que a testemunha faz afirmação falsa ou omite a verdade. Ele é verificado de modo objetivo: se há contradição entre depoimentos de testemunhas, não há que se falar em prisão em flagrante, pois não é possível identificar, de pronto, quem está falando a verdade.”
“Destaco, ainda, que, mesmo que a pessoa seja testemunha, se ela estiver depondo sobre fatos que podem incriminá-la, não pode ser obrigada a dizer a verdade. A princípio, portanto, por essas duas razões, pareceu-me desproporcional a prisão em flagrante de Roberto Dias”, ponderou.
Daniel Gerber, advogado da área penal com foco em gestão de crises político e empresarial, afirma que a CPI, por sua natureza, é “palco para debates políticos que extrapolam todas e quaisquer regras jurídicas que sirvam para a proteção individual daqueles que a ela se submete como investigado ou testemunha”.
“No caso específico da CPI da Covid, o elemento político fica ainda mais evidente diante do separatismo ideológico que estamos atravessando em nível global. Como exemplo, a prisão arbitrária de um depoente que era claramente investigado por suas ações, ou esvaziamento de plenário em momentos onde a prova coletada não estava em consonância com interesses daqueles que comandam o espetáculo. Enfim, estamos diante de um circo político que, a toda evidência, não se sustenta se dissecada sob as regras jurídicas vigentes e necessárias para uma investigação que se pretenda séria e efetiva.”
Também para João Vinicius Manssur, advogado especialista em direito penal econômico, é “evidente” que a prisão de Roberto Dias teve como objetivo constranger e demonstrar o punitivismo que ronda a CPI.
“Melhor solução seria, em caso de suspeita de prática do delito mencionado, o encaminhamento de peças pertinentes ao Ministério Público, titular da ação penal, de acordo com a Constituição Federal, para eventuais providências, à vista do caso concreto. A prisão de Roberto Dias está em total descompasso com o direito processual moderno, que coloca como medida excepcionalíssima a restrição da liberdade do agente.”
“Além disso, a negativa à resposta não pode implicar medidas coercitivas, por constituir direito previsto na Constituição Federal e se tratar de consectário lógico da garantia, também constitucional, do direito à não incriminação. A conduta desenvolvida na sessão telada ofende, sob vários aspectos, o regramento processual vigente, que caminha, de forma indissociável, com a Constituição Federal.”
André Damiani, criminalista especializado em Direito Penal Econômico, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados, explica que a expedição de mandato de prisão pela CPI precisa de autorização judicial. “A CPI tem poderes próprios das autoridades judiciais, como menciona o parágrafo 3º do artigo 58 da Constituição federal para notificar testemunhas, determinar a condução coercitiva de testemunhas, determinar a realização de exames, perícias e vistorias.”
“De outra banda, a CPI sempre precisará de autorização judicial, não podendo agir por conta própria, na expedição de mandado de prisão preventiva ou temporária”, esclarece. “Também é obrigatória a ordem judicial na expedição de mandado de interceptação telefônica, mandado de busca e apreensão, apreensão de passaporte e outras constrições judiciais da mesma natureza.”
Diego Henrique, criminalista e sócio do Damiani Sociedade de Advogados, destaca que, apesar de o presidente da CPI ter poderes inerentes às autoridades investigativas, inclusive para decretar a prisão em flagrante, esse poder não é ilimitado. “Tais prerrogativas devem ser sempre exercidas observados os direitos e garantias fundamentais de todo e qualquer cidadão”, ressalva.
“Nessa medida, a prisão é flagrantemente ilegal uma vez que a Constituição de 1988 garante a todos o direito de não autoincriminação, como corolário do próprio direito ao silêncio. Assim, independentemente da nomenclatura (testemunha, depoente etc.) que inicialmente se atribui a quem presta depoimento perante a autoridade investigadora, uma vez constatada a real posição de investigado daquele cidadão, a ele está garantida a possibilidade de calar, não colaborar, e, inclusive, mentir, sem que incorra na prática do delito de falso testemunho.”
Divergências
O presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, por outro lado, defendeu a CPI. Pelo Twitter, afirmou que o Senado cumpre seu papel constitucional. “É o respeito à Constituição que garante estabilidade, democracia e liberdade. O Legislativo, por meio da CPI, cumpre função de fiscalizar a administração pública — todos que a compõem. Descabida é toda tentativa de intimidar o Senado por estar cumprindo seu papel constitucional.”
Adib Abdouni, advogado criminalista e constitucionalista, também acredita que a atuação dos integrantes da CPI não pode ser confundida com “punitivismo”. Para ele, “esse conceito jurídico deve ser reservado ao endurecimento penal como medida de vingança ou de antecipação de pena, sendo evidente que a CPI não possui poderes ou atribuições constitucionais para punir quem quer que seja”.
Abdouni destaca que, na condição de testemunha e não de investigado, sob palavra de honra e promessa de dizer a verdade, alguém que omita fatos e informações “com sistemática índole de contradição de versões acerca dos acontecimentos de que tem conhecimento e que são objeto da investigação” incorre no “figurino típico de falso testemunho previsto no artigo 4º, II a Lei 1.579/52 que dispõe sobre as Comissões Parlamentares de Inquérito, assim como no artigo 342 do Código Penal”.
“Do contrário, a ausência de justa reprimenda a comportamentos intoleráveis como esses acabarão por contribuir para desmoralizar os relevantes trabalhos desenvolvidos pela CPI, dotada de poderes de investigação típicas das autoridades judicantes, na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais, com o fito de que a apuração final possa responsabilizar de forma pessoal os agentes políticos e servidores públicos que incorreram em inescusável inércia do dever de agir para evitar o recrudescimento da pandemia no Brasil”, afirma.
Da mesma forma, para alguns observadores, faltou uma presença mais forte da advogada que assistiu Roberto Dias. A começar pela opção de não buscar no Supremo Tribunal Federal a salvaguarda de Habeas Corpus — que o tribunal não negou até agora.
Outra ressalva se fez quanto à passividade ao longo do interrogatório. Ficou nítida, para esses observadores, a falta de orientação ao depoente — que, por ser voluntarioso, complicou sua situação ao falar mais que o necessário e se deixou enredar pela catimba dos senadores que, obviamente, não estavam ali para ajudá-lo.
Consultor Juridico