Juristas veem ‘consenso’ sobre a revogação da Lei de Segurança Nacional, mas alertam para ‘termos amplos’ e ‘açodamento’ em novo texto aprovado pela Câmara

Advogados, constitucionalistas e civilistas comentam a possibilidade de revogação, com a aprovação do projeto da ‘Lei do Estado Democrático’, do instrumento dos tempos do regime militar que vem sendo usado para enquadrar críticos do governo Bolsonaro

Redação

05 de maio de 2021 | 17h08

Foto: Michel Jesus / Câmara dos Deputados

Juristas e constitucionalistas consultados pelo Estadão consideram ‘louvável’ a possibilidade de revogação da Lei de Segurança Nacional – editada durante a ditadura militar – com a aprovação do projeto da ‘Lei do Estado Democrático’ pela Câmara dos Deputados, nesta terça, 4. Os especialistas ressaltam mudanças feitas no projeto que foi apresentado à Casa há nove anos, em 2002, mas consideram que ainda há ‘termos amplos’ no texto que segue para avaliação do Senado. Além disso, defendem a ampliação do envolvimento da sociedade civil organizada na construção da lei.

A maior participação social no debate sobre o texto que vai substituir a LSN é defendida pelo advogado Guilherme Amorim Campos da Silva, doutor em direito constitucional pela PUC-SP, professor titular do Programa de doutorado em direito da Uninove, sócios de Rubens Naves, Santos Jr. Advogados. Ele lembra que o projeto de lei aprovado pela Câmara foi apresentado no governo Fernando Henrique Cardoso, pelo então Ministro da Justiça Miguel Reale.

“O fato da votação ter sido simbólica, sem maiores discussões, sem envolvimento de comitês populares ou audiências públicas, revela certo açodamento com prejuízo da construção de um instrumento legal que reflita melhor a busca de um consenso em torno da defesa das instituições republicanas e do próprio Estado Democrático de Direito em face de ameaças e agressões que lhes possam ser dirigidas, tanto por cidadãos e grupos organizados, como por autoridades constituídas”, pondera.

Na mesma linha, o advogado Igor Luna, especialista em direito administrativo e relações governamentais, sócio do escritório Almeida Advogados, considera que a aprovação do texto, em votação simbólica, ‘não parece a melhor forma de conduzir os trabalhos’.

“Por se tratar de uma nova lei que trata de tema de evidente impacto nas relações entre poderes e sociedade civil, merecia a ampla participação de seus representantes em debates, que poderiam contribuir com o texto a ser votado. O texto aprovado, no geral, incluiu significativas mudanças no texto originalmente apresentado em 2002.

Porém, o texto está repleto de termos amplos e que poderiam ser substituídos por outros tecnicamente mais corretos para atender os propósitos dos tipos penais”, aponta o advogado que ressalta que a Lei de Segurança Nacional é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

O advogado Sérgio Bessa, especialista em Direito Penal do Peixoto & Cury Advogados, considera que há ‘razoável consenso’ quanto à reforma ou revogação da Lei de Segurança Nacional, mas para ele o projeto de lei aprovado foi ‘ressuscitado e votado às pressas, sem que tenha sido colocado em debate com a sociedade civil’.

“Trata-se de mais um exemplo do recorrente problema do sistema legislativo brasileiro: a promulgação de Leis de maneira açodada, como forma de dar rápida resposta à opinião pública, sem permitir, porém, que a população participe, com protagonismo, do processo. O final da história é lamentavelmente conhecido: proliferação de leis com má técnica redacional e que lá na frente demandarão novos debates sobre sua validade, pertinência e constitucionalidade”, afirma.

Fabrício Reis Costa, advogado criminalista de AVSN Advogados, também faz ressalvas com relação projeto de lei aprovado pela Câmara, apesar de ressaltar que o ‘caráter autoritário da LSN precisava, há muito, ser superado’. Para ele, os alguns novos tipos penais criados ‘têm forte caráter repressivo, com penas muito altas e redação confusa’.

Seguindo entendimento similar, a criminalista Paula Sion, criminalista, sócia do Cavalcanti, Sion e Salles Advogados, pede atenção do Senado ‘com cada vírgula do texto que se pretende promulgar’. “A aprovação de novos tipos penais requer atenção e ampla reflexão. Claro que temos que comemorar a revogação da Lei de Segurança Nacional, resquício da ditadura e que vinha sendo usada para perseguição política no Governo atual, justamente em razão da crise que vivemos em nosso ambiente democrático. Mas não resolveremos este problema se os tipos penais continuarem abertos demais. Me preocupa que a liberdade dos movimentos sociais e a liberdade de expressão sigam ameaçadas”, diz.

Por outro lado, Belisário dos Santos Júnior, ex-secretário de Justiça de São Paulo e integrante da Comissão Internacional de Juristas, ressalta mudanças que já foram feitas no projeto de lei, após contribuições aceitas pela relatora, a deputada Margarete Coelho. Segundo ele, alguns tipos penais amplos já foram retirados do projeto, sendo que eles ‘poderiam impedir a liberdade de expressão e atingir a vida de movimentos sociais’.

“Aprovada pelo Senado, a nova Lei deixará o Estado democrático de Direito mais protegido, sem afetar a manifestação crítica aos poderes constitucionais, a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais, por meio de passeatas, reuniões, greves, etc, formas de expressão democrática que o projeto afirma peremptoriamente não constituírem crime. Estamos chegando ao fim da era do inimigo interno, da ‘segurança nacional’, para lembrar que nossa vida em sociedade exige democracia”, pondera.

O texto aprovado nesta terça, 4, pela Câmara cria um novo título no Código Penal para tipificar dez crimes, entre eles interrupção do processo eleitoral, de fake news nas eleições e de atentado a direito de manifestação. O projeto institui por exemplo, entre outros pontos, o crime de golpe de Estado, inexistente na legislação atual nestes termos.

O criminalista João Batista Augusto Junior, sócio de Bialski Advogados, chama atenção para o fato de o projeto de lei aprovado coibir práticas atuais, como a disseminação de ‘fake news’, o que para o advogado representa ‘avanço no aprimoramento da legislação criminal’.

Na avaliação da advogada Mariana Costa de Oliveira, do escritório Daniel Gerber Advogados, a ‘defesa das instituições democráticas também deve ser enfatizada’, sendo que ‘ao lado de penas restritivas da liberdade deveriam também ser implantadas penas pecuniárias altamente pesadas’. “Talvez tenham maior eficácia as penas pecuniárias sobre difusores de notícias falsas do que mesmo penas de prisão, geralmente pouco eficientes para inibir delinquentes que cometem crimes dessa natureza”, aponta.

Para a advogada constitucionalista Vera Chemim, a revogação da LSN atinge mais o estigma que ela carregava, em razão da sua criação nos últimos anos da ditadura militar, do que propriamente seus dispositivos. Para ela, a derrubada na lei se fazia necessária para ‘a devida atualização do diploma legal, no que diz respeito à atual conjuntura política do País e principalmente, para atender aos valores e princípios que integram a Constituição Federal de 1988 e por conseguinte, do Estado Democrático de Direito’.

“Na primeira questão é válido reconhecer a nova tipologia de fatos típicos elencados no referido Projeto de Lei, visando garantir as liberdades de expressão que representa um dos pilares do regime democrático, além da punição correspondente à divulgação de fake News do ponto de vista eleitoral e outros que foram criados e sabiamente inseridos no Código Penal. Quanto a segunda questão, de caráter estrutural é possível observar que, determinados dispositivos remetem à lei revogada, com algumas modificações ou acréscimos em sua redação, procedimento natural, uma vez que, nem todos os artigos daquela lei seriam hoje, inconstitucionais e/ou anacrônicos”, explica.

Na mesma linha, André Damiani, criminalista, sócio fundador do Damiani Sociedade de Advogados ressalta que a LSN tem ‘vícios irremediáveis’: “Melhor começar do zero no tocante ao procedimento legislativo, porque vivemos num estado democrático de direito, que garante ao cidadão o direito de manifestações e descontentamentos. Chega de perseguição e afronta aos direitos humanos sob a invocação temerária de lei retrógrada, moribunda. Nos cabe agora sepultá-la de vez.”

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