“Gente diferenciada” ataca em Higienópolis

O singular fim de tarde em que, depois de ameaçar prender crianças, um sofisticado shopping recebeu, em seu átrio, um espetáculo-síntese das relações de classe brasileiras

Refinadas joalherias e lojas de roupa de grife, rapidamente, fecham suas portas. Os funcionários, entrincheirados entre manequins e vitrines, empunham celulares e registram o inusitado momento em que uma “gente diferenciada” adentra o Shopping Pátio Higienópolis do tradicional e nobre bairro paulistano.

 

“Que porra é essa?”, pergunta-se, incrédulo, um senhor barrigudo, de camiseta polo da Lacoste.

 

“Racistas, fascistas, não passarão! ”, vocifera um coro de aproximadamente 50 pessoas.

 

São lideranças de grupos como a Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio, Uneafro Brasil, Movimento Meninos e Meninas de Rua e Movimento Nacional da População em Situação de Rua que estão ali, em uma quarta-feira chuvosa (dia 28), contra o tratamento oferecido por essa “catedral do consumo e do capitalismo” – como lembravam os manifestantes nos discursos – às crianças e adolescentes em situação de rua.

 

Eles estendem bandeiras. Nos diferentes pisos, muitos se aproximam, curiosos, ao guarda-corpo do sofisticado átrio do shopping para assistirem, em primeira mão, a esse espetáculo-síntese das relações de classe brasileiras.

 

“É por causa daquele lance dos seguranças prender meninos de rua, tá ligado?”, ouço um jovem comentar com uma amiga.

 

“Meu, isso vai dar treta. Muita treta”, responde ela.

 

Uma mulher, vestida com uniforme de uma das lojas, aborda uma rodinha de mulheres negras que participam do ato.

 

“Dá licença. Vocês estão com eles?”, pergunta.

 

A funcionária – ou gerente – transmite uma espécie de exaltação contida, o que confere zelo e educação excessivos às suas palavras: reconhece o direito de expressão, mas alega que toda essa movimentação incide em um exagero – o que, porventura, nesse exato momento, está atrapalhando seu negócio e espantando os clientes.

 

“Vocês têm o direito de vocês. Mas vocês estão passando por cima dos meus direitos”, conclui.

 

“Veja bem”, sorri Néia Bueno, coordenadora do Movimento Meninos e Meninas de Rua. “Há uma política extremamente racista, eugênica, por parte do shopping. Eles acham que são superiores às outras pessoas e que esse lugar não é para certas pessoas. A gente está aqui porque o shopping tem que ser para todo mundo. Os meninos têm o direito de entrar aqui…”.

 

“Mas esses meninos entram aqui e fazem a maior bagunça. Vocês não têm noção de como é”.

 

“Se eles fazem isso”, continua Néia, com um tom que beira o professoral, “é um pedido de ajuda, de socorro. E como o shopping responde? Chama a polícia!”.

 

“Existe uma responsabilidade social do shopping”, continua outra manifestante. “Na verdade, é responsabilidade de todo mundo, inclusive de uma empresa grande como essa”.

 

“Mas vocês chegaram com o ‘pé no peito’”, insiste a mulher. “A forma que vocês chegaram não é legal. A gente estava tentando se organizar de uma forma que cuidasse e acolhesse. Que transformasse isso em uma coisa melhor. Acho que vocês estão transformando a situação em uma coisa maior do que realmente é. Não que não fosse, quer dizer, acho que é um problema muito grave que-”.

 

A batucada recomeça. Um manifestante agarra o microfone conectado a uma caixa de som improvisada, puxada como uma mala de rodinhas:

“Queremos saber: o Shopping Higienópolis vai ou não vai voltar atrás na decisão?”.

A pergunta feita não foi respondida, mesmo depois do ato. Recentemente, o Shopping Pátio Higienópolis entrou na Justiça para que seus seguranças tenham autorização para apreender crianças e adolescentes desacompanhados, mais especificamente “em situação de rua” — que, segundo a empresa, cometem atos de vandalismo, depredação, furtos, agressão e até intimidação aos frequentadores – e encaminhá-los à Polícia Militar.

 

O pedido foi negado pela juíza Mônica Arnoni, da Vara da Infância e Juventude, que acrescentou que “salta aos olhos, inclusive, a ausência de fundamento legal a embasar os pedidos”.

 

“De se recordar que o shopping é um local privado aberto ao público, e por isso deve permitir a circulação do público sem qualquer tipo de segregação ou preconceito. A simples presença física do outro que não é igual ou não segue o ideal de normalidade que se convencionou para o referido shopping center não legitima o pedido de autorização para apreensão de crianças e adolescentes, chamadas repetidamente pelo requerente de ‘em situação de rua’, indicando, quiçá, atitude discriminatória e ilegal”, pontuou a magistrada em seu despacho.

 

O advogado que representa a empresa, Daniel Bialski, disse que irá recorrer. Mas, em nota, o shopping afirmou que o pedido foi “mal interpretado” e pediu desculpas por “qualquer tipo de interpretação contrária à intenção de proteger os menores desacompanhados”.

 

Motivado por esse episódio, o Ministério Público de São Paulo instaurou um inquérito para verificar a formação dos seguranças de empresas privadas de segurança e se as orientações dadas às empresas e à população em geral está de acordo com o Sistema de Garantia de Direitos.

 

Não é a primeira vez que o bairro de Higienópolis, que tem um dos metros quadrados mais caros do Brasil, se torna notícia devido a denúncias de “higienização social”. Há cerca de cinco anos, empresários e moradores locais se opuseram a construção de um metrô na esquina da avenida Angélica com a rua Sergipe, o que gerou manifestações como o “Churrascão da Gente Diferenciada”. Além disso, no começo do ano, o bairro também foi notícia devido a articulações e campanhas online organizadas pelos moradores para “limpar” a região – o que inclui pessoas em situação de rua e trabalhadores informais e ambulantes como parte do lixo a ser varrido para fora de Higienópolis.

 

Foi nesse contexto, a que se soma a comoção nacional com a morte de um adolescente por um segurança do Extra, no Rio de Janeiro, que grupos ligados à defesa dos direitos humanos organizaram o ato.

 

No Largo Santa Cecília, às 18h, manifestantes começam a se concentrar. A bateria Eureca (Eu Reconheço o Estatuto da Criança e do Adolescente), formada por crianças e adolescentes do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, anima o grupo. Funcionários do metrô se acercam, querendo falar com representantes. Dois policiais também.

 

“Estamos em uma praça pública. Pelo direito de ir e vir”, justifica uma manifestante.

 

“Queremos proteger vocês”, explica o policial.

 

“Eu sei. Vamos caminhar daqui a o Shopping Higienópolis. Vocês sabem por que?”,

 

“Sabemos sim. Pelas crianças, não é?”, responde ele.

 

“Isso mesmo”.

 

“A senhora poderia se identificar? A propósito, meu nome é tenente Lopez”.

 

“Não. Ultimamente sempre que a gente se identifica é criminalizado”, diz, ressabiada, a manifestante.

 

Algumas pessoas discursam:

 

Neia Bueno (Projeto Meninos e Meninas de Rua): A gente está aqui para mostrar que meninos e meninas de rua não são caso de polícia, mas de políticas públicas. O governo congela por 20 anos o investimento em política pública e agora querem tratar a situação de criança e adolescente da população empobrecida como caso de polícia?

 

Sérgio Storch (Campanha contra Criminalização dos Movimentos Sociais): Como morador do bairro, sei da sua composição sociopolítica, mas temos também gente de esquerda aqui. Poucas, mas temos. Na minha esquina mora o Juca Kfouri, na outra a Zizi Possi e o Bob Fernandes. Tem uma massa crítica de pessoas que podem fazer um agito bem legal para que esse caso se torne um caso exemplar. Afinal, é um confronto da Casa Grande contra a Senzala acontecendo em um shopping, o templo do consumo.

 

Fábio Pereira (Kilombagem): Impedir a entrada desses meninos e meninas, que eles circulem dentro do shopping, nos faz pensar os vários processos eugênicos e higienistas da cidade de São Paulo. Não temos uma política efetiva de proteção integral dos nossos adolescentes para que eles não passem por situações como essa e outras, como internações compulsórias. A gente não pode se calar diante disso. Não são medidas socioeducativas, são medidas de aprisionamento.

 

Um pouco depois das 19h, o grupo partiu em direção ao shopping, acompanhado por duas viaturas que auxiliaram a controlar o fluxo de trânsito.

 

***

 

Uma aglomeração – de pessoas e celulares – circunda uma conversa entre manifestantes e representantes do shopping. Aproximo-me já no meio e ligo o gravador.

 

“…A gente fez um pedido e não foi bem recebido, foi mal interpretado, teve uma decisão equivocada. O shopping está olhando, a intenção é não recorrer, teve um resultado que não foi bom em razão de uma interpretação equivocada”, justifica a advogada Maristela Almeida, que integra a área jurídica da administração do Pátio Higienópolis. “A gente gostaria de saber se o recado está passado…”, pergunta ela, como quem deseja expulsar visitantes indesejados.

 

“A juíza deixou bem explícito que o shopping – e a gente sabe disso – tem muito dinheiro…”, insiste uma manifestante.

 

“Eu sei… É que…”, interrompe a advogada.

 

“Deixa eu terminar”.

 

“Tudo bem, é que…”.

 

“O que o movimento está solicitando: qual a posição de vocês em relação ao que a juíza trouxe? Ao invés de expulsar os meninos e meninas de rua…”.

 

“O shopping não vai expulsar os meninos e meninas de rua… Não foi esse o pedido…”.

 

“Mas o promotor Eduardo Dias está recorrendo nesse sentido. A posição nossa é muito tranquila. Nós temos movimentos de crianças aqui presentes…”.

 

“Não teve recurso. Eu não queria discutir juridicamente com vocês”, impacienta-se a advogada.

 

“A gente só queria um compromisso público de vocês”, intervém Douglas Belchior, da Uneafro. “Se vão recorrer ou não a esse absurdo e qual o compromisso social de vocês em relação a essas crianças aqui do bairro. Porque vamos voltar aqui se isso continuar, com muito mais gente do que hoje”.

 

“O que eu proponho para vocês é: vamos marcar uma reunião para a gente conversar sobre isso?”.

 

“Sim, mas vocês não vão recorrer né? Esse assunto está encerrado?”

 

“Olha… vocês vieram aqui hoje para fazer um…”

 

“Ato”.

 

“Uma manifestação e um ato. O shopping ficou de portas abertas para que vocês fizessem a manifestação e o ato de vocês”.

 

“Várias portas se fecharam…”

 

“Não. Não. O shopping está de portas abertas. Vocês entraram aqui de forma pacifica e passaram o recado de vocês. Certo?”, diz a advogada, tentando encerrar a conversa.

 

“Mas o nosso recado não terminava no ato. Nosso recado tem um objetivo muito explícito…”, responde outra manifestante.

 

“Vocês…”.

 

“Deixa eu terminar, um minutinho. A gente está entrando no shopping, o shopping é lugar público e privado…”.

 

“Nessa reunião vamos falar absolutamente tudo com vocês…”, interrompe, novamente, a advogada.

 

“Mas a senhora falou agora a pouco que a tendência é não recorrer…”, lembra Belchior.

 

“É verdade. A tendência é não recorrer. Isso é uma grande verdade. Até porque houve um equívoco de interpretação do nosso pedido…”.

 

Chegam, enfim, a um acordo: representantes dos grupos presentes e do shopping se reunirão na quinta-feira (dia 7), às 17h, para resolverem o impasse.

 

“Então temos um compromisso do shopping de que a tendência é não recorrer?”, pergunta Belchior.

 

“Não, não. Por favor…”, esquiva-se a advogada. “Tem um compromisso do shopping de receber uma comitiva de vocês, de umas cinco pessoas. Esse é o compromisso do shopping. Nós sentamos e conversamos, ok? Estamos abertos a conversar”.

 

“Os movimentos não vão aceitar essa postura e se não recuar nós vamos voltar aqui”.

 

“Na paz!”, afirma a advogada, quase como um pedido.

 

“Nós somos da paz”, responde Belchior.

 

“Nós também”, rebate ela.

 

Ele a olha, como se ouvisse um grande “conto do vigário”.

 

“É, se fossem mesmo não tinham entrado na justiça”

 

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